sexta-feira, maio 11, 2007

A tal da não-inscrição

Tinha começado a comentar o teu post, dear Junu. Mas como a coisa estava a ficar para o grande, passei para aqui.

Um filósofo (José Gil) que irrompeu por aí há um par de anos e esteve muito na moda (sobretudo porque o "Nouvel Observateur" disse que era um dos pensadores europeus mais originais da actualidade, o que deixou logo toda a gente excitadíssima) lançou o conceito da "não inscrição" portuguesa. Diz ele:

"Em Portugal, nada acontece, quer dizer, nada se inscreve - na história ou na existência individual, na vida social ou no plano artístico.(...)A não-inscrição não data de agora, é um velho hábito que vem sobretudo da recusa imposta ao indivíduo de se inscrever. Porque inscrever implica acção, afirmação, decisão com as quais o indivíduo conquista autonomia e sentido para a sua existência. (...) Nada tem realmente importância, nada é irremediável, nada se inscreve" ("Portugal, Hoje - O Medo de Existir").

E há dias, lembras-te? falávamos do Eduardo Lourenço e do que ele diz, por exemplo, sobre a perda do Império colonial: aquilo por que tanto havíamos lutado caíu sem emoção de maior.

"Um acontecimento tão espectacular como a derrocada de um império de quinhentos anos, cuja posse parecia co-essencial à nossa realidade histórica e mais ainda fazer parte da nossa imagem corporal, ética e metafísica de portugueses, acabou sem drama. (...)A maneira como foi vivida e deglutida pela consciência nacional é simplesmente assombrosa. Ou sê-lo-ia, se a capacidade fantástica que em nós se tornou uma segunda natureza de integrar sem problemas de consciência o que em geral provoca noutros povos dramas e tragédias implacáveis, não atingisse entre portugueses culminâncias ímpares." ("O Labirinto da Saudade").

Nos anos 60, a questão da Argélia pôs a Franca à beira da guerra civil e ainda hoje se vêem as feridas. A perda de Cuba em 1898 virou quase a Espanha do avesso, e provocou um fortíssimo movimento de renovação política e cultural, um "repensamento" geral do que era e do que poderia ser a Espanha. Por cá... Houve uns resmungos, e a coisa passou, quase como se nunca tivesse acontecido.

A nossa falta de memória colectiva tem a ver com isto - com as coisas passarem por nós sem nos marcarem demasiado. Nós, portugueses, não temos memória, temos uma vaga lembrança. Não temos História, temos saudades. Todo o povo precisa de uma imagem idealizada de si próprio. Mas a nossa não é idealizada, é irrealista. Por isso vivemos entre a glória e o descalabro, entre a euforia e o desânimo, quase sem estados intermédios que permitam que nos pensemos devidamente a nós próprios. Não pensamos. Não nos questionamos. Somos um povo completamente bipolar, para não dizer esquizofrénico.

Quem sabe se isto não terá também algumas vantagens? A "não-inscrição" talvez nos poupe a traumas que de outra forma nos teriam destruído há muito. Ainda acerca da descolonização, é espantoso como um país de dez milhões de pessoas integrou, de um dia para o outro, quase meio milhão de "retornados" (5% da população!) sem grandes problemas nem convulsões visíveis. Não estou a ver muitos países fazerem isto.

Enfim, Tout comprendre c'est tout pardonner, dizem. Mas se não encontramos um lado bom de tudo isto, ainda que pequenino, resta-nos o desespero de viver numa terra que nada exalta, nada mobiliza, nada indigna - a não ser, vagamente, o futebol. E mesmo aí, só pela rama.

2 comentários:

Anónimo disse...

belo post...

FuckItAll disse...

indeed